Nota da Vida

*Publicada originalmente no Facebook em 15/01/2018
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Rolando na cama de um lado para outro, ainda sob o efeito do último filme assistido, da última reflexão (onde o crítico literário diz à jovem escritora que ela não é “ruim”, apenas “inexperiente”, que ela deve se jogar na vida, amar, quebrar a cara, sofrer e apenas depois disso tudo escrever) me deu uma vontade louca de escrever um texto “tão lindo que até dói”, como os que escreve o Walter Silva ou com a verdade e a profundidade dos textos do Ricardo Rocha Aguieiras.
Admiro muito os dois amigos, a qualidade da sua escrita, a fluência da narrativa mas, acima de tudo, a capacidade que eles tem de escrever longos textos, que se tornam curtos, de tanto que cativam o leitor, seduzem, encantam e fazem com que não consigamos nos desligar deles sem sorver até a última gota, sem vislumbrar até a última letra, o último sinal gráfico…
Pensando ainda no filme, me lembrei mais uma vez da minha juventude. Impossível não lembrar como eu era belo, mas de uma beleza fria e vazia, sem conteúdo algum, sem vida, sem experiência, raso como uma poça d’água…
Como eu me arrependo hoje de ações e omissões, de atitudes ou da falta de atitude. Quanta gente boa eu magoei sem querer magoar, simplesmente por não saber expor o eu real, aquele que eu mesmo não conhecia ainda!
Já escrevi que na juventude tudo é potencial e tudo é condicional… Você está “em processo de”, tudo está para “vir a ser”… Você não é nada, você será… Sequer a orientação sexual de um jovem é tida como absoluta ou definitiva!
Me achava sábio, de uma sabedoria livresca e erudita, de vida e experiências roubadas de personagens de romances e de filmes, de autores e de professores… Na falta de vivências e experiências próprias, plagiava sem nenhum pudor vidas alheias, chegando a convencer a mim mesmo que existia alguma verdade nesta usurpação.
Me lembro de reproduzir, quase ao pé da letra, as falas de determinado professor da UNICAMP, que eu admirava, para o meu primeiro namorado, a quem eu desejava encantar.
Desnecessário dizer que ele se desencantou muito antes do esperado!
Quando me sentia intimidado por alguma pessoa ou alguma situação assumia uma mal disfarçada “superioridade”, um ar “blasè” que eu aprendera, junto com a própria palavra, em um filme que eu assistira.
Não precisei construir castelos no ar porque vivia praticamente em um: uma casa imensa, cujo terreno ia quase de uma rua à outra, com quase 100 anos de idade e muito mal reformada na década de 1950. O velho assoalho de tábuas corridas rangia sob nossos pés (a despeito das vigas de madeira e até da coluna de ferro que meu pai colocara no porão para dar sustentação) e os lustres de cristal tilintavam cada vez que um ônibus passava na rua.
A verdade é que nossa casa esteve caindo aos pedaços a maior parte do tempo e, como eram os anos 80, a “década perdida”, em geral não havia dinheiro nem para uma pintura. Até mesmo o aspecto decadente e arruinado de “casa assombrada”, com os corredores escuros e os porões que eram como calabouços, cheios de objetos dos antigos proprietários, fantasmas e segredos, aumentava a similaridade com os castelos ou os casarões de fazendas sulistas, destruídos pela guerra civil, dos filmes que eu assistia.
Sobre os fantasmas, convém notar que durante uma obra que meu pai realizou em um porão descobriu uma parede de taipa. Este fato aliado às correntes em outro porão e à porta com grades, moedor de café e terreiro tijolado no quintal, nos faziam pensar em uma senzala, na primeira formatação da casa, bem anterior à que nós conhecemos.
Além dos prováveis espíritos de cativos, a casa presenciara um crime e um trágico acidente. Uma das filhas do antigo proprietário fora acusada de matar o próprio marido, tendo dado a luz na cadeia. Já a esposa, por sua vez, caíra de uma escada quando colocava uma cortina, ainda jovem, e tornara-se paraplégica, passando o resto da vida numa cadeira de rodas.
Uma de minhas irmãs teve diversas crises de sonambulismo durante as quais se sentava no sofá e parecia conversar com alguém, provavelmente D. Rosa, a esposa do Sr. Jaime Elias, que foi quem vendeu a casa aos meus pais.
Meu pai passou anos praticamente sem sair dos porões, razão pela qual sempre desconfiei que seu espírito tenha ficado preso à casa, mesmo depois da demolição, no final dos anos 1990.
Vivendo em um castelo arruinado, eu assumira os modos de um príncipe, apreendidos principalmente no filme “O Leopardo”, que assisti várias vezes, e que tinha Burt Lancaster – que eu sempre achei um tesão de homem, da juventude à maturidade – como protagonista, no papel do Príncipe de Salinas.
“O Leopardo” se passa no sul da Itália, terra da família da minha avó, que foi a última pessoa realmente glamourosa e interessante, a única digna de nota em toda a minha família. Dela também copiei muita coisa: a pintura, o gosto pelas viagens, a franqueza, a gargalhada sonora, o Espiritismo e, posteriormente, o completo desdém pela “moral e bons costumes”, que eram a tônica da família da minha mãe, cheia de carolas e “ratos de Igreja”.
Foram necessários trinta e tantos anos para que se desse a passagem, lenta e gradual, de lá para cá, do “vir a ser” para o estar, do ser em construção para o quase terminado, do jovem para o adulto.
Agora que estou velho não me sinto mais sábio, não vivo em um castelo encantado e não me porto como um príncipe. A vida me domesticou e adestrou, me recolocou no meu devido lugar e, ao fazê-lo, estranhamente, me deu uma dignidade e uma respeitabilidade que eu não tinha!
Quando olho no espelho não vejo mais grandes olhos cor de mel, cabelos loiros sobre um rosto fino e queixo anguloso. Havia até um pescoço sob o rosto!
Hoje o que eu vejo é um coroa gordo, de aparência afável e eu me identifico com ele! Existem marcas do tempo. O homem que eu vejo mostra experiência e maturidade e, neste sentido, talvez seja hora de verdadeiramente me olhar no espelho e tornar público o texto que escrevi para uma colega de faculdade há alguns anos e que nunca tive coragem de enviar.
Deixo o texto aqui porque talvez não seja apenas endereçado unicamente a ela, mas a várias pessoas que, como eu disse no início, por inexperiência ou por imaturidade eu acabei magoando, embora não desejasse magoar. Que cada uma destas pessoas, mesmo aquelas que eu nem me lembro mais, sintam-se contempladas e representadas na pessoa desta minha colega, que, por respeito e por não desejar magoar ainda mais, irei omitir aqui o nome. Que cada uma dessas pessoas, no íntimo do seu ser, me perdoe.
“Bom dia A.! Sei que vai achar estranho eu escrever. Estou ficando velho e há algumas coisas que eu gostaria de dizer para algumas pessoas, até porque, em geral, quem fala demais (como eu) diz pouco. Nada do que irei expor aqui vai mudar alguma coisa hoje em dia, quem nos tornamos e a vida que temos, o processo que tivemos para chegar até aqui, mas pode ajudar a aclarar o passado, tornar mais leves as lembranças e as histórias que ficaram para trás, há 30 anos para ser mais exato. Quando nos reencontramos, lá pelo ano 2000, eu ainda não estava preparado e amadurecido o suficiente para falar, mas hoje eu estou! Decidi escrever porque pensando nos nossos 30 anos de graduados na UNICAMP estive procurando as pessoas das quais eu me lembrava no Facebook e evidentemente me lembrei de você! Pelo seu perfil encontrei também o da E. e da C., o qual me comoveu profundamente porque, para mim, ela é hoje a exata imagem da sua mãe, tal como me lembro dela! Ela foi uma grande mulher. Você e a sua família foram algumas das melhores pessoas que conheci. Não estou falando que foram algumas das melhores pessoas que conheci naquela época, mas sim que foram algumas das melhores pessoas que conheci em toda a minha vida: mais puras, sinceras, acolhedoras! Reformatei e reutilizei várias coisas que ouvi, vivi e aprendi com vocês em situações que a vida me proporcionou em anos subsequentes. Voltando à nossa época de entrada na faculdade direi que ser adolescente e pós-adolescente já é suficientemente difícil em “condições normais”, mas quando você não sabe exatamente quem e o que você é – porque tem ainda um ranço muito grande da religião na qual foi criado e porque até mesmo o seu corpo está em transformação – é ainda mais difícil! Não digo isso para me desculpar ou me eximir de algo que eu tenha feito ou deixado de fazer, mas para explicar as transformações que estavam acontecendo internamente comigo naquele momento, as quais nem sempre foram percebidas em tempo hábil, e as dificuldades e confusões que elas ocasionaram. Sei que posso ter passado para a história de vida de várias pessoas como um grande mentiroso e um dissimulado, mas esta não é a verdade, já que eu estava sendo absolutamente transparente e sincero durante todo o processo, em cada etapa dele, e se eu afirmei coisas que depois a vida me fez desmentir ou reformular, é apenas porque eu ainda não me conhecia o suficiente, não sabia o suficiente sobre mim mesmo… Por exemplo, só tive certeza absoluta que eu sou homossexual em outubro de 1987 quando conheci o meu primeiro namorado, por quem tive uma paixão obsessiva e avassaladora. Transformei a vida do coitado em um verdadeiro inferno com o meu sentimento de posse, o meu ciúme doentio. Aprontei tanto que ele se mudou de São Paulo e voltou para Campo Grande para fugir de mim! E eu fui atrás…Mas isso é outra história… De 1985/86 até aquele momento, mais ou menos, eu “achava” que era gay e “às vezes”, mas não tinha certeza, até porque nunca havia tido experiência sexual de tipo nenhum. Não tinha atração alguma por mulheres (apesar de, paradoxalmente, sempre ter tido mais afinidade/proximidade com o sexo feminino, o que complicava e confundia tudo) mas, ao mesmo tempo, nunca havia tido experiência com homens, nem beijo! Com o tempo tudo foi ficando mais claro e as convicções religiosas e medos foram embora, o extremo apego à família foi substituído pela busca da constituição de uma nova família; o amor pela História da Arte foi completamente substituído por outras práticas e outros saberes. Me tornei um ser humano completo, enfim realizado. Bem, acho que é aqui que chega o cerne da questão e o motivo pelo qual estou escrevendo que é simplesmente pedir perdão a você a toda a sua família por ter envolvido vocês no meu processo de autodescoberta e nas minhas confusões de saída da adolescência e ingresso na vida adulta. Inúmeras vezes desejei jamais ter frequentado a sua casa e jamais ter estado tão próximo, para não ter causado dissabores. Se após ter sido tão próximo, nos anos subsequentes eu me afastei progressivamente e cada vez mais, não foi por não ter consideração por vocês, pelo contrário. Muitas vezes, o que de mais respeitoso podemos fazer por alguém é nos afastarmos, quando percebemos que podemos ser causa de aborrecimento ou infelicidade e foi o que eu acabei fazendo com vocês! É exatamente porque fomos muito próximos que precisei me tornar distante! Em relação a outras pessoas, com as quais eu não tinha nem tanta afinidade e nem tanta proximidade, as coisas foram se resolvendo naturalmente e processualmente ao longo da vida. Jamais me tornei muito próximo ou muito íntimo do A., do Claudio Borges ou das duas R., embora tenha convivido com todos eles, até profissionalmente (Claudio Borges e R. na Prefeitura e A. na Faculdade em Bragança, onde lecionei por 20 anos), ao longo dos anos e os encontrado sazonalmente em reuniões. Nunca mais vi a M. de Caieiras ou o P. de Sumaré, mas me lembro deles. A Célia Serrano reencontrei no Facebook, assim como inúmeros amiguinhos e amiguinhas de infância e com eles todos estabeleci um novo relacionamento (virtual), em novas bases. Bem, era isso! Quando um vaso se quebra ele nunca mais volta a ser igual mas, se tivermos fotos nítidas, podemos olhar para elas e saber como exatamente ele era! Só quero mesmo, além de pedir perdão, desejar a todas vocês uma chuva de bençãos em suas vidas e que vocês sejam sempre MUITO, MUITO, MUITO felizes!” – escrito em 1º de novembro de 2016

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